quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A viagem do elefante

Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.

Que é um acto poético, perguntou o rei, Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu.

A julgar pela altura o sol, deviam ter andado umas três horas, maneira de dizer demasiado conciliatória porque uma parte não pequena desse tempo tinha-a gasto salomão a tomar banhos no tejo, alternando-os com voluptuosas chafurdices na lama, o que, por sua vez, era motivo, segundo a lógica elefantina, para novos e mais prolongados banhos.

Como o boieiro não sabia cavalgar, um caso flagrante, como se vê, das consequências negativas de uma excessiva especialização profissional, içou-se com dificuldade para a garupa do cavalo do sargento e lá foi, rezando, numa voz que ele próprio mal conseguia ouvir, um interminável padre-nosso, oração da sua especial estima por aquilo que nela se diz de perdoar as nossas dívidas. O mal, que em tudo está, e às vezes até deixa o rabo de fora para que não tenhamos ilusões sobre a natureza do bicho, vem logo na frase seguinte, quando se diz que é obrigação nossa de cristãos perdoar aos nossos devedores. O pé não joga com a chinela, ou uma coisa ou outra, resmungava o boieiro, se uns perdoam e outros não pagam o que devem onde está o benefício do negócio, perguntava-se.

O comandante da cavalaria e o homem que viaja em cima, Em cima de quê, De deus, do animal. O cura respirou fundo, sujeitou o ânimo que o estava impelindo a maiores extremos e perguntou, Vocês estão bêbados, Não, senhor padre, respondeu o coro, é difícil estar bêbado nos tempos que correm, o vinho está caro.

[…] para o limpar de qualquer possessão diabólica que haja sido introduzida pelo maligno na sua natureza de bruto, como aconteceu aos dois mil porcos que se afogaram no mar da galileia, como deveis estar lembrados. Abriu espaço para uma pausa, e logo perguntou, Entendidos, Sim senhor, responderam todos, excepto o porta-voz que ia tomando cada vez mais a sério a sua função, Senhor padre, disse, esse caso sempre me fez confusão na cabeça, Porquê, Não percebo por que tinham esses porcos que morrer, está bem que jesus tenha feito o milagre de expulsar os espíritos imundos do corpo do geraseno, mas consentir que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca me pareceu uma boa maneira de acabar o trabalho, tanto mais que, sendo os demónios imortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído à água já os demónios se haviam escapado, em minha opinião jesus não pensou bem, E tu quem és para dizeres que jesus não pensou bem, Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler, mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A minha filha mais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos percebendo-a cada vez melhor, Em compensação, o pior é que, com tais pensamentos e opiniões, se a inquisição aqui chega serás o primeiro a ir para a fogueira, A gente de alguma coisa terá de morrer, padre, Não me venhas com estupidezes, deixa-te de evangelhos e dá mais atenção ao que eu digo na igreja.

[…] lembrai-vos, o povo unido jamais será vencido.

Arriscamo-nos a dizer que está por estudar a importância dos intendentes, mas também dos varredores de ruas, no regular funcionamento das nações.

Imagine vossa paternidade que eu levo lá o elefante e ele se recusa a ajoelhar-se, embora eu não entenda muito desses assuntos, suponho que pior que não haver milagre é encontrar-se com um milagre falhado, Nunca terá sido falhado se dele ficaram testemunhas, E quem vão ser essas testemunhas, Em primeiro lugar, toda a comunidade religiosa da basílica e quantos cristãos dispostos consigamos reunir à entrada do templo, em segundo lugar, a voz pública que, como sabemos, é capaz de jurar o que não viu e afirmar o que não sabe, Incluindo acreditar em milagres que nunca existiram, perguntou o cornaca, São esses os mais saborosos, dão trabalho a preparar, mas o esforço que pedem é em geral compensador, além disso, aliviamos de maiores responsabilidades os nossos santos, E as de deus, A deus nunca o importunamos para que faça um milagre, é preciso respeitar a hierarquia, quando muito recorremos à virgem, que também é dotada de talentos taumatúrgicos, Quer-me parecer, disse o cornaca, que pela vossa igreja católica anda muito cinismo, Talvez.

Nem precisas de saber, basta que tenhas fé, Fé em deus, ou no meu elefante, perguntou o cornaca, Em ambos, respondeu o padre, E quanto vou eu ganhar com isto, À igreja não se pede, dá-se.

Confiemos na benevolente compreensão divina dos factos deste mundo, se deus, como supomos, quer ser servido, convirá que dê uma ajuda aos seus próprios milagres, aqueles que melhor falarão da sua glória, Irmãos, a fé pode tudo, deus obrará no que faça falta, Amém, vozeou em coro a congregação preparando em mente o arsenal de orações adjuvantes.

Quem diria que a moral nem sempre é o que parece e que pode ser moral tanto mais efectiva quanto mais contrária a si mesma se manifeste.

Não ordenou, […] apenas deu a entender, o que demonstra uma vez mais que o respeito pelos sentimentos alheios é a melhor condição para uma próspera e feliz vida de relações e afectos. É a diferença entre um categórico Levanta-te e um dubitativo E se tu te levantasses.

Como já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto.

Se toda a gente fizesse o que pode, o mundo estaria com certeza melhor.