sexta-feira, 29 de junho de 2012

Como não amar?

“O comandante da cavalaria e o homem que viaja em cima, Em cima de quê, De deus, do animal. O cura respirou fundo, sujeitou o ânimo que o estava impelindo a maiores extremos e perguntou, Vocês estão bêbados, Não, senhor padre, respondeu o coro, é difícil estar bêbado nos tempos que correm, o vinho está caro […]”

“[…] para o limpar de qualquer possessão diabólica que haja sido introduzida pelo maligno na sua natureza de bruto, como aconteceu aos dois mil porcos que se afogaram no mar da galileia, como deveis estar lembrados. Abriu espaço para uma pausa, e logo perguntou, Entendidos, Sim senhor, reponderam todos, excepto o porta-voz que ia tomando cada vez mais a sério a sua função, Senhor padre, disse, esse caso sempre me fez confusão na cabeça, Porquê, Não percebo por que tinham esses porcos que morrer, está bem que jesus tenha feito o milagre de expulsar os espíritos imundos do corpo do geraseno, mas consentir que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca me pareceu uma boa maneira de acabar o trabalho, tanto mais que, sendo os demónios imortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído à água já os demónios se haviam escapado, em minha opinião jesus não pensou bem, E tu quem és para dizeres que jesus não pensou bem, Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A minha filha mais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos percebendo-a cada vez melhor, Em compensação, o pior é que, com tais pensamentos e opiniões, se a inquisição aqui chega, serás o primeiro a ir para a fogueira, A gente de alguma coisa terá de morrer, padre, Não me venhas com estupidezes, deixa-te de evangelhos e dá mais atenção ao que eu digo na igreja […].

E diz o padre “Lembrai-vos, o povo unido jamais será vencido.”


in A viagem do elefante, José Saramago, o maior de sempre.