Um avião cai nos Andes. Ou nos Alpes? Nos Andes, nos Andes. Enfim, um avião cai no topo nevado de uma montanha. Todos os seus ocupantes sobrevivem à queda, mas, como o socorro custa a chegar e abandonar o abrigo dos destroços do avião para enfrentar as nevascas e ir procurar ajuda significaria morte certa, os sete - são sete - vêem-se diante do seguinte problema: como ficarem vivos até serem resgatados. Têm água da neve, mas não têm comida, depois que acabar o amendoim. O que fazer?
Os dias passam, o socorro não vem, e cresce entre os sete a certeza de que serão obrigados a recorrer ao canibalismo. Um deles terá de morrer para que os outros se alimentem. Mas quem deve morrer? Qual o critério para escolher o sacrificado?
- Deve ser o mais velho entre nós – opina um jovem. - Um que já viveu bastante e cujo sacrifício beneficiará os que ainda terão uma vida pela frente, se formos salvos.
- Não esqueçam – diz o mais velho de entre eles – que a carne dos idosos é mais dura. E, mesmo, os mais velhos são mais filosóficos. Desconfio que, se o socorro não vier e o nosso fim se revelar inevitável, precisaremos mais de filosofia do que de carne.
- Devemos matar e comer o mais fraco de entre nós – diz um musculoso. - Não só será o que oferecerá menor resistência como a sua carne será, provavelmente, mais tenra.
- Epa – diz o aparentemente mais fraco de todos. - Onde estamos? A lei do mais forte não pode imperar entre pessoas civilizadas. Proponho um sorteio. Quem perder será sacrificado.
Nestas ocasiões, sempre aparece um líder natural, alguém com senso prático e superioridade intelectual, que se impõe aos demais. É o que acontece. O líder natural se manifesta:
- Devemos repudiar qualquer tipo de solução que agrida a moral, como a de sacrificar o mais velho só por ser o mais velho, ou a ética, como a dos fortes subjugarem os fracos. Também devemos evitar qualquer tipo de imposição alheia a uma decisão humana, como a da pura sorte no caso de um sorteio. Somos seres racionais, capazes de decidir o seu destino racionalmente e democraticamente.
E propõe:
- Todos devemos nos sacrificar de forma equânime. É a única solução ética, a única solução moral, a única digna de homens decentes. Em vez de um de nós morrer para alimentar os outros, todos devemos dar uma parte do seu corpo para ser comida. E, para que a igualdade seja completa, a parte sacrificada do corpo de cada um deve ser a mesma. O braço direito, que faz falta a todos na mesma proporção.
Apesar de alguns protestos, todos acabam aceitando a proposta racional. Afinal, são homens decentes. E a argumentação do líder natural, de sacrifícios iguais para homens iguais, é irrespondível.
Semanas depois, os destroços do avião são localizados, e uma turma de resgate descobre seis homens vivos no seu interior. Cinco sem o braço direito, um – o mais musculoso – com os dois braços. E o esqueleto de um sétimo homem, o líder natural, sob cujas ordens cada um tinha cortado o braço direito do outro, até chegar a sua vez de cortar o braço direito do musculoso, quando se revelara que ele era o único canhoto do grupo e todos tinham caído em cima dele... E cuja carne os mantivera vivos até chegar o socorro.
Significando, acho eu, que o importante não é o discurso, é quem discursa.
World Press Photo 2024
Há 1 dia
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Xiça!
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