terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Li por aí...

Um avião cai nos Andes. Ou nos Alpes? Nos Andes, nos Andes. Enfim, um avião cai no topo nevado de uma montanha. Todos os seus ocupantes sobrevivem à queda, mas, como o socorro custa a chegar e abandonar o abrigo dos destroços do avião para enfrentar as nevascas e ir procurar ajuda significaria morte certa, os sete - são sete - vêem-se diante do seguinte problema: como ficarem vivos até serem resgatados. Têm água da neve, mas não têm comida, depois que acabar o amendoim. O que fazer?
Os dias passam, o socorro não vem, e cresce entre os sete a certeza de que serão obrigados a recorrer ao canibalismo. Um deles terá de morrer para que os outros se alimentem. Mas quem deve morrer? Qual o critério para escolher o sacrificado?
- Deve ser o mais velho entre nós – opina um jovem. - Um que já viveu bastante e cujo sacrifício beneficiará os que ainda terão uma vida pela frente, se formos salvos.
- Não esqueçam – diz o mais velho de entre eles – que a carne dos idosos é mais dura. E, mesmo, os mais velhos são mais filosóficos. Desconfio que, se o socorro não vier e o nosso fim se revelar inevitável, precisaremos mais de filosofia do que de carne.
- Devemos matar e comer o mais fraco de entre nós – diz um musculoso. - Não só será o que oferecerá menor resistência como a sua carne será, provavelmente, mais tenra.
- Epa – diz o aparentemente mais fraco de todos. - Onde estamos? A lei do mais forte não pode imperar entre pessoas civilizadas. Proponho um sorteio. Quem perder será sacrificado.

Nestas ocasiões, sempre aparece um líder natural, alguém com senso prático e superioridade intelectual, que se impõe aos demais. É o que acontece. O líder natural se manifesta:
- Devemos repudiar qualquer tipo de solução que agrida a moral, como a de sacrificar o mais velho só por ser o mais velho, ou a ética, como a dos fortes subjugarem os fracos. Também devemos evitar qualquer tipo de imposição alheia a uma decisão humana, como a da pura sorte no caso de um sorteio. Somos seres racionais, capazes de decidir o seu destino racionalmente e democraticamente.
E propõe:
- Todos devemos nos sacrificar de forma equânime. É a única solução ética, a única solução moral, a única digna de homens decentes. Em vez de um de nós morrer para alimentar os outros, todos devemos dar uma parte do seu corpo para ser comida. E, para que a igualdade seja completa, a parte sacrificada do corpo de cada um deve ser a mesma. O braço direito, que faz falta a todos na mesma proporção.
Apesar de alguns protestos, todos acabam aceitando a proposta racional. Afinal, são homens decentes. E a argumentação do líder natural, de sacrifícios iguais para homens iguais, é irrespondível.

Semanas depois, os destroços do avião são localizados, e uma turma de resgate descobre seis homens vivos no seu interior. Cinco sem o braço direito, um – o mais musculoso – com os dois braços. E o esqueleto de um sétimo homem, o líder natural, sob cujas ordens cada um tinha cortado o braço direito do outro, até chegar a sua vez de cortar o braço direito do musculoso, quando se revelara que ele era o único canhoto do grupo e todos tinham caído em cima dele... E cuja carne os mantivera vivos até chegar o socorro.

Significando, acho eu, que o importante não é o discurso, é quem discursa.


Luís Fernando Veríssimo in Actual, caderno do Expresso; algures entre jun.05 e jan.06