quinta-feira, 10 de março de 2005

Dias

Eu não te escrevi nem uma linha desde a última vez, este tempo todo, não te disse nada, nem um recado te deixei. Não era preciso. Era preciso até demais. Fui escrevendo uns rabiscos, isso sim, numas folhas de embrulhar que, estúpida, deixei ficar em cima do ficheiro da Biblioteca Municipal. Felizmente que foi assim e não de outra maneira. Quem as encontrou, se as leu, não percebeu nada – só tu talvez, nem tu sequer – e se percebeu não percebeu que tinham a ver contigo, contigo e comigo e da maneira como eu estou contigo e não tenho outra nem quero ter. Quem as encontrou nem sequer quero saber, talvez tenha ficado intrigado, um sentimento de que eu gosto, e tu não? Eu gosto mesmo. A sério, não é todos os dias. Aquilo que eu escrevi era só um código secreto de mim para mim passando inutilmente por ti. É que tu não tens nada a ver com isto. Tens tudo. Só que tu não sabes, nem vais saber, por isso são intrigantes, se alguém os leu, os meus rabiscos.

Agora que a minha melhor amiga me trocou por um ideal tão ultrapassado que nem o consigo ver, das duas uma: ou continuo como sou e espero que ela volte, mesmo que não saiba quando, ou então transformo-me e compro um livro sobre filosofia hindu, que tu me hás-de recomendar, se fazes o favor. Pelo menos isso, está?
Eu acho que ela vai voltar. Ainda tenho tanto para lhe dizer. Apesar de ela nunca ter tido muita paciência para me ouvir. Eu sei. O que é que queres, atropelaram-me o cão, o David Byrne faz-me chorar, eu tenho a certeza de que ela vai voltar. É tão estranha a sensação de não viver. De estar só à espera que aconteça. Olhar para trás e ver que em quase meio ano nada aconteceu. Pelo menos comigo. Como costumava dizer a Isabel, nos tempos em que ainda ia comigo para o Imperial, eu estou em stand by. Como os gravadores de vídeo e as câmaras de filmar. Como os passageiros à espera de um outro destino naquelas salas de aeroporto que são onde melhor se ouve a solidão de estarmos tão perdidos assim como eu estou aqui, que por momentos nos transformamos em verdadeiros fantasmas, sem sombra sequer, sem nada. Até acontecer alguma coisa. Vai ter de acontecer. E não acontece.

Aquilo com que eu me importo é que ela não estivesse em casa porque devia estar em casa de uma nova amiga que arranjou enquanto eu estava na enfermaria. É verdade. Roo-me de ciúmes. Tenho sempre ciúmes das minhas amigas. Só delas. Só dela. É o meu único defeito. A Isabel acusa-me de ser muito certinha, mas eu nem percebo o que ela quer dizer. Se calhar o que ela quer dizer é que eu devia ser como a sua nova amiga, muito certinha. Que me sentasse em casa de uns amigos com mau aspecto em cima de um tapete peruano a fumar haxixe de terceira e a ouvir Ravi Shankar num leitor de cassetes de 1966. Certinha. A contar, que pena não ter estado em Woodstock nenhuma vez.

Comprei uma saia. Preta. Comprida. Que me parece ter a ver com o saudosismo do movimento gótico, se é que existiu, percebes o que eu quero dizer? (Se não perceberes o que quer que seja diz logo, está bem?) Andei com ela, a saia, duas vezes. Ouvi comentários desagradáveis de trolhas e mestres de obras e motoristas de autocarros. Fica óptima, a saia, pendurada no roupeiro, pendurada mesmo por debaixo de um kispo verde florescente que era do meu avô levar ao futebol nos dias de chuva. Ambos devem fazer uma chama linda, imagina só. Sim, é verdade que estou confusa, confusa e irritada, não te quero esconder. Ontem tive um momento de paz quando acordei de madrugada a pensar que estava em Cork City. Não estava. Telefonei logo à Isabel para irmos ao parque de Serralves tomar um chá. Eu sei que tu já lá estiveste com as tuas amigas e já contaste tudo aos teus amigos e inventaste o resto, mas eu não me importo nada com isso, tu sabes.

Desde a última vez, desde a última vez, não sei a sério há quanto, tanta coisa se passou e quase nada, se formos a ver, sobretudo daquilo que estou à espera que aconteça e não acontece, nem sei muito bem o quê, mas tem de acontecer, e o mais depressa possível porque de outra maneira não pode ser e estou a começar a ficar aflita, tu não?

Desde a última vez. Passei por tantas coisas diferentes que me fizeram sentir tantas coisas diferentes que acabei por ficar muito diferente e confusa ao mesmo tempo. Sim, confusa, não é preciso dizer como é. É como eu estou. E tenho a minha monografia sobre os vestígios da arte etrusca para escrever, e até já comecei a trabalhar, mas só dentro da cabeça, sem ter escrito uma única linha, deliciada que estou com esta minha preguiça, esta minha derrota, esta minha última derrota.

As coisas foram diferentes porque eu nunca as tinha vivido antes, foi assim, porque me fizeram diferente, senão não eram verdadeiramente diferentes, não achas? Passei duas semanas no hospital de Sant’ana.

Tirei muito sangue. Ou tiraram-me muito sangue. Ou perdi-o não sei por onde. Quase não dormi. Fui obrigada a ver aquele programa da vaca na tv. Ouvi centenas de vezes o American Prayer porque era a única cassete que tinha comigo. E fiquei a gostar ainda mais. Tu não sabes como é. Se calhar foi por pensar que nunca mais ia ouvir música na vida. E estraguei um dos meus livros preferidos por lhe estar sempre a mexer. Não o destruí, só lhe dei uso a mais. Não o podia ter longe de mim porque era a única coisa que me fazia sentir diferente de toda aquela gente que andava por ali. E eu precisava. Mesmo assim nunca me senti tão vulgar, tão indiferente. Não há nada pior do que uma enfermaria. Na sala de exames cortaram-me o fio celta com um bisturi. Não o deviam ter feito. Sabes quem mo deu, não sabes?, e se calhar não era celta coisa nenhuma. Não lhes perdoo. Perdoo o resto. É o bastante. E depois fui ver o David Byrne ao Coliseu e chorei, não sei porquê. Às tantas foi por ter saído directamente da enfermaria para o concerto. Com aquele fato de treino azul marinho que me obrigaram a vestir durante quinze dias. Ordens do médico. Merda.

E depois comecei as aulas. Tive aulas com um professor croata que fala português melhor do que eu e chamava “cervejeiros” aos que faltavam às aulas todos os dias. A mim não. Tem piada, não tem? Mas um idiota atropelou-me o cão e eu agora tenho de dormir sozinha, se é que consigo dormir quando tento dormir. E sem o meu cão tenho de falar com as coisas. É estúpido demais falar com um cd nas mãos. Também cheguei ao fim do primeiro volume do Em Busca do Tempo Perdido, e acho que vou ficar por aqui. Sei de antemão que não vou ter paciência para ler os sete que ainda restam. É muito tempo. Não tem piada, eu sei, mas eu gostava na mesma que sorrisses.

Pintei dois quadros que ninguém entende, que devem estar de pernas para o ar, como eu, mas só para ti. Não faz mal, apesar do resultado final deu-me gozo pintá-los. Pintei-os a ouvir um cd de ópera, o primeiro que comprei na minha vida. Scarlati, acho eu. Já tinha um, mas foi oferecido. É diferente. Também comprei outros. Stone Roses. Smashing Pumpkins. Blur. Pearl Jam. Musicalmente continuo na mesma, como vês. E tu, o que é que andas a ouvir?

Entretanto vou lendo os meus livros favoritos mais uma vez, ouvindo a minha música mais linda, mas não vou voltar a pintar. Quanto mais não seja porque pintar suja as minhas mãos. Olha, finalmente julgo que estou a ficar apaixonada. Pela minha caneta de tinta permanente preta. Também é intrigante uma pessoa poder apaixonar-se assim, por uma coisa. É talvez uma questão de estética. É certamente a melhor maneira de passar estas horas fechada dentro de uma loja de ferragens, nesta velha loja de ferragens coberta de pó fino, como se o pó pudesse ser de outra maneira, como se eu pudesse ser de outra maneira, como se alguma coisa fosse acontecer e eu aqui rodeada de pilhas e listas telefónicas onde está o teu nome por inteiro, a tua morada completa e o número do teu telefone que eu juro que nunca vou marcar e sei muito, muito bem de cor, apesar de tão confusa hoje aqui, que te deixo e o meu pai está-me a chamar, é que ele trabalha aqui, tu sabes, adeus.



De alguém que eu gostava de conhecer..