terça-feira, 30 de maio de 2006

wit #14

CRÓNICA DE UMA BANDEIRA PORTUGUESA

E de um Portugal muito, mas mesmo muito profundo!

20 de Maio de 2006, todo o santo dia!



Capítulo I - A BANHADA

Podia ter-me dado para pior... mas o certo é que me levantei cedo no sábado, fresca e bem disposta, para ir para a bandeira mais bela do mundo.

Às 10h da manhã já estava em Lisboa para me encontrar com a minha amiga Sandra. Fomos para Entrecampos apanhar o autocarro para o Estádio mas autocarros, nem vê-los! Primeira asneira.

Perguntámos a dois GNRs (um segurava nos cavalos e o outro enfiava uma cervejola pela goela abaixo) e mandaram-nos para o Campo Grande. Metemo-nos no metro. Segunda asneira: lá em baixo estava uma multidão de estudantes a berrar RFI e aos hurras, pulos e encontrões e quase que andámos pelo ar... Por pouco não fomos arrastadas para a benção das fitas. Fizémo-nos de pequeninas, encolhemo-nos e lá conseguimos chegar ao Campo Grande, já fartas do banho de multidão, mas ainda sem saber o que nos esperava depois...


Capítulo II - A PEIXEIRADA

Ai que bela bicha nos esperava ! (sim, bicha, que eu falo português). Tinha aí uns 200 metros de comprimento e dois de largura.. Os autocarros lá iam arrancando com o mulherio e uns tantos homens "a tomar conta" mas perto da nossa vez, deixou de haver transporte.

Esperámos pacientemente ao sol e lá fomos metendo conversa umas com as outras, para passar o tempo. Conhecemos duas raparigas que tinham vindo de Peniche, aí com um metro e setenta cada uma (isto é importante, como verão depois).

Passado um bocado, começaram a chegar os vendedores ambulantes, que nos massacraram durante uma hora com:

- “olhó apito", “olhó apito",
- "olha a capa pró telemóvel","olha a capa pró telemóvel",
- "vá lá filhas, só 1€, tá a acabar!", só 1€, tá a acabar!",

Ninguém comprava nada. Então passaram a andar para cima e para baixo, só para fazer olho gordo ao mulherio e dizer umas parvalheiras, até que uma velha os enxotou com uns berros e a ameaça de uma mala nas trombas.

Acalmaram-se os ânimos. Chega finalmente um autocarro mas....oh!! pára no fim da bicha (200 metros mais abaixo) e começa a meter pessoal à balda.

Aquecem os ânimos outra vez. Começámos a protestar mas lá atrás não estavam nem ralados. O autocarro arranca e nós andámos para o meio da estrada, fechando a saída. O autocarro pára e começa a confusão... o motorista abre a janelinha e diz:

- “Eu apanho quem quero e onde quero e caluda, ó mulheres! (era para as que estavam lá dentro ou cá fora ?) . Toca a andar!”

Terceira asneira (esta foi só dele). O autocarro não sai, as que lá iam dentro começam aos insultos e aos gestos, muito valentonas com as portas e janelas fechadas, claro! Cá fora com civismo e firmeza. ninguém arredava pé. Fomos mimoseadas e epítetadas com tudo de mais vernáculo que a língua portuguesa tem. Com mais ou menos calma, chamamos a polícia.

Os autocarros das carreiras dos subúrbios também não conseguem sair e começam a buzinar com raiva. Um motorista mete a cabeça de fora e grita:

- "ó tiazinhas, vão para casa coser meias!! eu estou a trabalhar e não consigo passar!".

O mulherio responde:

- "se tem pressa, faça marcha atrás e contorne, que abrimos passagem!!".

Ele ataca de novo:

- "Bando de malucas, precisam é de uma carga de porrada".

Elas com paciência:

- "Ó homem, não se meta, se tem pressa vá andando!!".


Não satisfeito, ainda insiste:

- "Bando de galinhas!!",

Elas, com esta, arrumaram-no:

- "Cocorocó"!

Juntam-se os mirones habituais, cada vez mais gente e...chegam 4 carros de polícia, com grande aparato. As da bicha aplaudem, as do autocarro borram-se.

O primeiro polícia a sair ficou logo com os tímpanos furados. Elege-se uma comissão de cada um dos lados, tudo na maior confusão. Sai do autocarro uma lambisgóia a dizer que era amiga dos jogadores e tinha que sair já. Assobios e gargalhadas. A dita cuja volta para dentro derrotada e sai uma padeira de aljubarrota, com barrigona e bigode a condizer, a mostrar um crachá.

A comissão das apeadas diz:

- “Olha, olha, andam a distribuir disso ali na esquina... as filas são para se respeitar!”

A padeira de aljubarrota fica sem argumento e retira-se ferida na sua esperteza saloia. Fecha-se a porta do autocarro. Nova ronda de gestos feios das motorizadas. As apeadas fazem queixa, os polícias vão lá dentro ralhar. Mandam o motorista manter a porta fechada, o motor desligado e as janelas fechadas.

Passa mais uma hora e meia. Lá dentro abanam-se furiosamente.

Abre-se a porta do autocarro. Já desgrenhadas, despenteadas e a suar por todos os cantos, decidem que podem levar mais 10 apeadas. Ninguém aceita. Apupos. De novo gestos feios e narizes esborrachados no vidro. Lá vai a polícia outra vez mandá-las estar quietas...

Contudo, cá fora ninguém deu pelo tempo passar. Aquela hora e meia passou veloz. Foi divertidíssimo, o máximo. Só faltaram as farturas!

Chega finalmente um autocarro mas ninguém entra sem a polícia se comprometer que não deixa sair o outro. Entramos por fim, sob aplausos da bicha (cada vez maior!) e tomas e "big fingers" do autocarro . A polícia vai lá outra vez...

Uma da tarde. Arrancamos. Trânsito infernal, mais bichas. Fomos ultrapassadas pelas arruaceiras. Festival de gestos. Quase duas da tarde. Chegámos!!!


Capítulo III - APERTÕES, APALPÕES E DESMAIOS (NÃO NECESSÁRIAMENTE POR ESTA ORDEM)

Subida a pé quase desde a marginal até ao estádio. Pelo caminho assa-se bifanas e há cerveja a rodos, vendedores quanto baste, apitos, cachecóis e bandeirinhas. Uma multidão gigantesca.. O site dizia que às 11 da matina abriam as portas mas tal só aconteceu à uma da tarde.

Uma voz masculina num altifalante diz para se aglomerarem à direita, ao pé do arbusto (qual? eram tantos...). Não conseguimos encontrar as outras amigas e separámo-nos das conhecidas de Peniche, as tais de um metro e setenta. Fomos andando e antes de darmos por isso, estávamos envolvidas numa multidão na entrada errada (a voz do altifalante dizia que era à direita, mas dele... portanto à esquerda da multidão...). Quarta asneira.

No meio daquele mar de gente, fomos apanhadas por uma excursão de muitos autocarros de Vila Nova da Não-Sei-das-Quantas composta por mulheres já desorientadas a berrar:

- "Ó Cremilde!", “Ó Cremilde, onde te enfiaste, mulher ?!!” (a dita, pelos vistos, tinha-se posto ao fresco com o farnel) e

- "Ai Valha-me Nossa Senhora, Ó Lurdinhas!", “Lurdíííínhas!!” (esta devia ser a que tinha fugido com as bebidas)

Foi o caos total. Empurrões, falta de ar, homens pelo meio aos apalpões, a Sandra a mandar tirar a "mãozinha", eu a bufar, o Scolari a pedir para levantarem os braços e a multidão sem ter espaço para dar um arroto.

Depois de muitíssimo bem espremidas, conseguimos finalmente entrar no estádio, onde vi pela primeira vez um elemento da organização. Reportámos a falta dela. Cara pesarosa mas encolher de ombros. Não esperavam tanta gente....( no comments!)

Estávamos a dez metros da bancada mas já não se conseguia passar. Esperámos junto às ambulâncias. Passado pouco tempo, já nem ali se conseguia estar. Desmaios eram mais que muitos, sempre sob um sol abrasador e sem água. Os bombeiros estavam desorientados, a polícia também.

Parecia uma cena do "Benny Hill": os bombeiros, para passarem de um lado para o outro da ambulância, tinham de entrar por uma porta e sair pela outra, sempre aos berros, com uma maca semi-aberta e cada um a puxar para um lado diferente.. As pessoas que desmaiavam saíam por cima das cabeças da multidão e eram levadas em braços para trás de uma sebe, à sombra. Resta saber quem estava atrás dela...espero que alguém credenciado, mas depois de tudo o que vi, já não digo nada!

A polícia mandou-nos sair dali para tentar criar finalmente um corredor de emergência. De facto, queríamos sair dali e do estádio e que a bandeira fosse para um dos muitos sítios para onde nos tinham mandado logo de manhã.... Nova dificuldade: Sair. Quinta asneira.

Portões fechados e outra imensa multidão cá fora a querer entrar. Com a ajuda da polícia, lá conseguimos escapulir-nos por uma brecha, onde já estava um bêbado furioso a tentar entrar por cima das grades, com um

- "f...-se.! com tanta mulher lá dentro e não deixam entrar um gajo! hics!!".

Levou para trás, pois então, que a polícia já estava a subir pelas paredes, assim como todos/todas nós.


Capítulo IV - O ASSÉDIO

Mal fugimos da confusão, sentámo-nos na estrada à sombra, a beber um Capuccino gelado e a dar descanso às pernas. Sexta asneira. Não se podia estar ali. Desde chulos, “mãozinhas”, larápios, cromos e tarados, havia de tudo.

Por uma coincidência enorme, encontrámos as duas conhecidas de Peniche, esbaforidas. Uma delas tinha acabado de arrefinfar um soco num bêbado, que se tinha atracado, sem qualquer cerimónia, às glândulas mamárias da moçoila.

(Não se esqueçam que cá fora havia muita bebida fresca... e muita frustração por ficar de fora.)

Nesta altura do campeonato, já estávamos quase a perder a compostura. Descemos a estrada sempre a rosnar “olha que levas um murro nos cornos!" e decidimos que o melhor era NÃO esperar pelo autocarro de regresso, senão íamos ter um resto de tarde igualmente memorável...


Capítulo V e último - PEIXEIRADA II

Fomos a pé até à marginal apanhar o comboio; só queríamos sair dali. Sétima asneira.

Chegámos à estação de comboios da Cruz Quebrada e.... surpresa das surpresas: rebenta outra peixeirada entre as vendedoras e os vendedores (sim, eles também fazem peixeirada!), que se tinham colocado nos sítios estratégicos e não deixaram que os outros "se estreassem".

Depois de muita gritaria e palavrões que fariam corar as arruaceiras do autocarro, lá chegou o comboio para regressarmos a casa. Foi um curso acelerado do mais puro vernáculo, com umas variantes que eu ainda nunca tinha ouvido...

O regresso foi uma volta ao mundo até chegar ao carro em Entrecampos.


CONCLUSÃO

Caso estivéssemos esquecidas ou distraídas, vimos como este Portugal é ainda tão, tão profundo....falta de organização, mau planeamento, ausência de informação, caos, falta de civismo, bebedeiras, falta de respeito, má-criação, chico-espertismo, em suma, tudo o que parece fazer parte da nossa nobre pátria e que não nos larga por nada deste mundo. Contudo, na televisão foi tudo muito bonito.

Moral da história:

Cansadas ? SIM! Imensamente, pela espera, calor, empurrões e espremidelas.

Stressadas ou Chateadas ? NÃO! garantidamente. Num só dia, tivemos o privilégio de fazer quinhentas mil coisas que jamais nos passariam pela cabeça em toda uma vida, muito menos de manhã quando nos levantámos....

Senão, vejam:

Cortámos uma estrada, parámos um autocarro, respondemos sarcasticamente com “cócorocós”,
levámos um ralhete da polícia, apresentaram-nos desculpas, apoiaram-nos, rimos à gargalhada com as peixeiradas sem perder a compostura, saímos em ovação, socorremos desmaiadas (arre, pesavam que nem chumbo!), e, finalmente, ainda arregaçámos as mangas prontas para nos defendermos dos bêbados e tarados e... se fosse preciso pancada, venha ela!

Ora digam lá, se se pode almejar tanto num só dia ??

Abraços débeis...
Suzana Abreu, Lisboa, 23/05/06